segunda-feira, 29 de abril de 2013

Iron Man 3

Realização: Shane Black
Argumento: Shane Black e Drew Pearce
Elenco: Robert Downey Jr., Gwyneth Paltrow e Guy Pearce

Repitam estas palavras, encaixem-nas bem: 'Melhor Marvel de Sempre!'. Duvidam? Pois digo-vos que, se o mundo dos comics conheceu uma fase negra no grande ecrã, agora renasceu. Eu sei que quando digo comics tenho que falar do Universo DC e outros que tal, mas agora estou a referir-me à desgraça da trilogia Spider-Man, ao cataclismo da saga X-Men, ao terrível Daredevil, à merda do Fantastic Four, ao subaproveitamento da personagem do Silver Surfer, ao Hulk do paneleiro, ao Hulk da favela e a tudo, tudo o que o Hugh Jackman fez, faz ou alguma vez fará. Foi um período negro, sem dúvida.

Mas eis que chega Jon Favreau. Favreau começou a sua carreira em Hollywood como actor "terciário" em filmes de relativa importância, mas cedo evoluiu para comédias a dois com o seu amigo de longa data Vince Vaughn. Juntos, Favreau e Vaughn foram um sucesso nos anos '90. Passa o milénio, e Favreau decide aventurar-se pela realização - o resultado, foi a comédia de sucesso Made com a presença, uma vez mais, do seu amigo Vaughn. Mas tudo isto era brincadeira de criança - filmes pouco trabalhosos, experimentais, nada de grandes estúdios, nada de grandes produções. Mas Favreau teve sonhos mais altos - quis reinventar a forma como se filmavam heróis de banda desenhada. Foi então que um realizador inexperiente (Favreau), se juntou a um actor renegado (Downey Jr) e decidiu adaptar um dos heróis menos populares do universo principal da Marvel (Iron Man). E o resultado, foi o momento de viragem mais importante da história da indústria dos quadradinhos.

Ao sucesso de Iron Man, seguiu-se o sucesso de Iron Man 2, e depois Thor, Captain America, o projecto Avengers e a reinvenção do Spider-Man e, agora, deu-se o segundo momento de viragem - Favreau encostou à box e delegou o menino dos seus olhos para a mão de Shane Black. Mais um realizador/escritor renegado, que transformou esta saga sobre um herói egocêntrico e sem poderes, numa personagem ultra-complexa, ultra-interessante, cheia de crises de ansiedade, piadas sarcásticas e dilemas (a)morais. O que faz de Iron Man o melhor Marvel do cinema, é o que Favreau e Downey Jr fizeram de Tony Stark. Se nos outros dois filmes Tony já tinha ameaçado "nacionalizar a defesa nacional", neste filme põe os interesses do país de lado para perseguir vingança pessoal, goza com a mudança do nome de War Machine para Iron Patriot, e o filme transforma-se numa enorme crítica aos EUA, à forma como criam terroristas e lhes dão uma cara para satisfazer o público, a forma como deixam o lobby das armas reinar sobre a política, e ainda alerta para o perigo da ciência e da evolução pela cobiça e fraqueza do Homem. E a parte mais incrível, é que junta tudo isto a acção sem limites (e de grande, grande qualidade), intercalada com momentos cómicos do melhor que se faz em cinema e uma profundidade moral e humana que assusta num filme deste género.

Os super-heróis são a mitologia do séc. XX. Depois de Homero, veio Stan Lee. Depois de Ulisses, veio o Super Homem. A banda desenhada foi feita para nos ensinar bons valores morais, nos aspirar a ser melhores humanos, nos incutir sentido de responsabilidade pelas nossas acções e pelas acções do mundo à nossa volta. Eu cresci rodeado de super-heróis, gastava os meus escudos na papelaria em frente a minha casa todas as semanas, deixava-os fazerem-me companhia quando o mundo lá fora parecia mais frio e injusto, com falta de heróis que pudéssemos amar e respeitar, deixando-os moldar a nossa personalidade à sua figura. Agora, 15 anos mais tarde, percebo que os super-heróis me continuam a educar. Ontem, Tony Stark mostrou-me que um herói também tem ataques de pânico, também toma más decisões, também deixa o seu ego sobrepor-se a tudo o resto. Ontem, Tony Stark mostrou-me que, de ferro ou de carne, um homem constrói-se devagar, com paciência, peça a peça, limando arestas, aperfeiçoando virtudes e nunca deixando os monstros do nosso passado vencerem os heróis do nosso futuro.


Golpes Altos: Cenas de acção, cenas cómicas. Robert Downey Jr. está incrível, como sempre. Gwyneth Paltrow com muito pouca roupa(!), 10 fatos de Iron Man diferentes. Conclusão épica para um herói que ainda tem muito a dar.

Golpes Baixos: Não podiam ter escolhido um puto mais fixe?!

sexta-feira, 26 de abril de 2013

Golpes de Génio - Wild River

Realização: Elia Kazan
Argumento: Paul Osborn
Elenco: Montgomery Clift e Lee Remick

Há uma certa justiça poética no curso de um rio. Separa vidas, segue caminhos, deixa que a natureza corra pelo meio da civilização como uma última palavra de Deus sobre o destino da humanidade. Com a evolução, o Homem aprendeu a amansar a força dos rios, a criar barragens para os controlar - mas há algo de pouco natural na contenção de um rio, como se estivéssemos a impedir a natureza de fazer o seu trabalho.

Poucos realizadores sobreviveram à passagem do filme a preto e branco para o filme a cores. Ainda menos foram bem sucedidos nos dois campos. Elia Kazan é um dos maiores nomes do cinema mundial e certamente um dos seus grandes peregrinos. Kazan reinventou o cinema, reinventou os actores, os diálogos, os planos e os temas. Antes de Kazan, as histórias de amor dos anos 50 de Hollywood eram secas, pouco profundas, pouco reais. As relações de Kazan mostraram-nos as imperfeições do amor, as falhas humanas, os desejos ardentes e o seu inevitável fim.

Em Wild River, Kazan conseguiu conciliar dois temas na mesma obra, deixando-nos divididos sobre qual o mais importante. Wild River é um filme sobre a destruição causada pelo Tennessee River na década de '20, e os esforços do Governo para o controlar, comprando as terras à sua volta para que se pudesse construir uma barragem. Este é o contributo político e histórico do filme, mas a mensagem ultrapassa-o. Montgomery Clift é o homem enviado pelo Estado para comprar a última parcela de terra restante, um pequeno ilhéu no meio do rio, cuja dona recusa a abandonar. A dona é uma velhinha que começamos por odiar, por considerar um entrave à evolução - à civilização. Mas mais tarde compreendemos que é mais que isso. O que a velhinha acredita, é que o que é selvagem assim deve permanecer, e as vidas que a natureza tira, à natureza pertencem. Prefere arriscar a sua sorte, mas manter a sua dignidade. 'I like wild things Mr. Glover. God intended them that way'.

Mr. Glover (Montgomery Clift) respeita e admira a velhinha, apaixona-se pela sua neta (Lee Remick), e o resto da história é uma fogosa e doentia paixão que consome os dois personagens, e que vimos desvendar-se em frente dos nossos olhos pela força de diálogos reais, diálogos credíveis, de pessoas complexas, pessoas perturbadas - pessoas. O trabalho de argumento é notável, mas é a técnica trazida por Kazan - o Method Acting - que torna as situações tão imperfeitas, tão sinceras.

Wild River é um filme sobre imperfeições. Sobre o equilíbrio que delas advém, sobre a justiça que praticam. Lutar contra a força de um rio é tão inútil como a luta contra a evolução do Homem. E o amor corre selvagem, sem que se compreenda o que o pára ou o que o motiva, confiando que o que tiver que ser, naturalmente, será.


Golpes Altos: O cinema que imita a vida, sem estereótipos nem adornos. Trabalho de um grande mestre do cinema. Mallick veio aqui beber, e muito.

Golpes Baixos: Vou deixar de fazer Golpes Baixos em Golpes de Génio...

quinta-feira, 25 de abril de 2013

Os Amantes Passageiros



Realizador: Pedro Almodóvar
Argumento: Pedro Almodóvar
Actores: Javier CámaraPepa CharroLola Dueñas, Blanca Suárez

O maluquinho do Espanhol partilha com o grande Woody uma coisa... a taradice sexual e as perversões anexas. Outra coisa que têm em comum é a genialidade com que abordam esse tema nalguns casos sempre com recurso a diálogos de inegável qualidade.
Este não é um desses casos em que tudo se conjuga, no entanto, é bastante divertido.

A história passa-se num avião comercial cheio de gente doida. Desde a tripulação, passando pelos clientes da classe executiva e acabando nos menos importantes, os clientes da classe económica. Qualquer semelhança com a realidade não é mero acaso certamente, na verdade este filme aproveita para espicaçar hospedeiras, comissários, comandantes e passageiros. São detalhes? Sim, mas estão lá.
O que une estas pessoas todas? Um problema que mais tarde é desvendado... aí, começam-se a revelar as facetas mais divertidas e extrovertidas das personagens.

O filme é só isto? De certa forma sim... Daí não ser nada mais do que um bom exercício estético já característico do Almodóvar, um bom número de piadas e momentos desconfortáveis, uma boa dose de tensão sexual constante e o habitual cruzamento de bons actores com actores muito maus.

Extremamente previsível, um filme que não tenta ser genial mas que tenta aqui e ali ser político, ser provocador, mas sem sucesso... esses temas mais delicados são colocados a martelo quando o que queremos ver é a palhaçada que às tantas se gera.

Repito, é um filme muito divertido que entretém imenso... Mas espremido é mesmo só isso... Ah, e uma LINDÍSSIMA Blanca Suárez...

Quem viu não notou ali nada de The Full Monty?

Golpes Altos: Estética, é divertido e tem personagens mesmo muito neuróticos. Ah, os diálogos são muito bons... Ele é realmente excelente nisso. Blanca Suárez.

Golpes Baixos: História, tudo é previsível, não há esforço e faz tentativas de abordar temas mais delicados sem qualquer nexo...

terça-feira, 23 de abril de 2013

Golpes Indie - Simon Killer

Realização: Antonio Campos
Argumento: Antonio Campos
Elenco: Brady Corbet, Lila Salet e Constance Rousseau

'I've always wanted to be a lion', diz Simon quando conta a história de como a mãe o costumava chamar 'raposinha'. São dois tipos bastante diferentes de animal, o leão e a raposa - um é corajoso, protector, forte e viril; o outro é fraco, matreiro, hábil e mentiroso. E tudo vai mal no reino animal, quando uma raposa quer por força ser leão.

Simon Killer não foi feito para ser gostado. É um filme visto pela perspectiva de uma das personagens mais odiosas da história do cinema. Vimos Paris pelos olhos do seu protagonista, vimos as mulheres pelos olhos do seu protagonista mas, sobretudo, vimos o seu protagonista. Simon assombra o filme. Simon é um personagem de Dostoiévski, sem os pontos altos. É um vermezinho horrível que somos obrigados a conhecer aos poucos durante 105 minutos, começando por meter pena e terminando com asco, deixando-nos a implorar para que o filme acabe para não sermos obrigados a olhar mais para a sua cara. E tudo isto pode parecer terrível, mas não é.

A realidade, é que Simon é uma personagem monstruosa, excepcionalmente bem construída e brilhantemente interpretada. Simon mostra-nos o que de pior existe no ser humano, sem hipótese de redenção ou luz ao fundo do túnel. E o filme acompanha o personagem a par e passo. A realização de Antonio Campos é desconfortável. Os planos fogem constantemente a qualquer regra do cinema, deixando-nos claustrofóbicos, a implorar por uma freixa de ar puro que nos afaste do mundo doentio de Simon - mas ela nunca chega. Não existem heróis, nem anti-heróis, nem vilões - existe um jovem que vem passar férias a Paris, destrói umas quantas vidas, e volta para casa.

E é tudo isto e muito mais, que faz deste um dos melhores filmes que vi este ano - certamente um ponto forte do festival IndieLisboa - e de Antonio Campos um nome a decorar. A realização é desconfortável, mas é esse o seu objectivo. Campos parece sempre filmar espaços, e deixar que os personagens entrem e saiam deles a seu belo prazer. Filma Paris sem focar o que de melhor há na cidade. Porque o filme são os olhos de Simon, e Simon não está interessado em Paris. Está interessado em si próprio, nos seus desgostos amorosos, na sua tese de mestrado, nas suas fraquezas, na sua capacidade de engate, na sua mamã. A verdade é que existem pessoas fracas, existem mentirosos, existem cobardes e existem pessoas assombradas. Mas Simon leva tudo isto a um ponto sociopata.

Na sala onde assisti ao filme, algumas pessoas saíram a meio. E saíram a meio num dos poucos momentos de violência que existe no filme e que, ainda assim, não é sequer explícita. Saíram, provavelmente, porque todo o ambiente do filme é violento - não para os personagens, mas para o espectador. Nós, seres-humanos, temos necessidade de assistir a alguma catarse, alguma justiça, alguma esperança de que o universo se organize e que "Deus castigue". Mas Simon é o seu próprio deus, e não existe castigo para ele no filme, não existe perdão, não existe sequer conclusão - existe apenas o decorrer normal da vida de uma pessoa de merda.

Para mim, é fascinante ver um personagem tão bem trabalhado, num filme tão bem conseguido, tocando num tópico tão impopular, com uma abordagem tão escatológica, tão visceral. Fez-me lembrar o último filme de Steve Mcqueen. Shame é um filme melhor, com uma realização mais matura e um argumento mais rico. Mas a personagem principal é, a meu ver, menos profunda e menos credível que a de Simon. 

Faz parte da arte o retrato do grotesco. Faz parte da vida sermos obrigados a lidar com pessoas que desprezamos, sermos obrigados a ver coisas que não queremos. Simon Killer é um feel-bad movie, mas um que todos deveríamos ver.


Golpes Altos: Banda sonora incrível e incrivelmente bem editada com o filme (vou já sac... comprar o cd). Uma das melhores personagens que já vi no grande ecrã. Trabalho de actores maravilhoso (soube depois, pelo agradecimento em palco do realizador, que os dois actores principais participaram também na escrita do argumento - bem jogado!).

Golpes Baixos: Talvez (talvez!) uma certa saturação da realização de autor. Pré-requisito de estômago forte - deixem os valores morais em casa.

sábado, 20 de abril de 2013

Guilty Pleasure - Last Action Hero



Realizador: John McTiernan
Argumento: Zak Penn & Adam Leff (story) Shane Black & David Arnott
Actores: Arnold SchwarzeneggerF. Murray AbrahamArt Carney, Austin O'Brien


Como poderia não respeitar este realizador? Quem tem no CV o Predador, o 1º e o 3º Die Hard... Merece uma vénia! Ele sozinho significa 7 anos de adolescência com heróis de barba rija!

Vi este filme com 11 anos, acham que era sequer possível não AMAR isto? Era gajo para ter a idade do protagonista, era gajo para ter o ex-Mister Universo como grande ídolo, era gajo para todos os dias sonhar em ter a experiência que o puto teve!
Entrar num filme com o Schwarzenegger??? Assim??? Ter um bilhete dourado e às tantas fazer parte do enredo e ainda perceber que sei mais que eles todos???

Ok, com 11 anos não era assim tão estúpido... já sabia que isto não era possível mas o imaginário tinha sido criado e eu adorei a ideia... De repente temos um filme que relata o exagero da vida dentro de um filme. As explosões exageradas, os tiros demasiado certeiros, as miúdas todas giras em demasia, cartoons no meio de seres-humanos, vilões demasiado óbvios, saltos e voos épicos, tudo! Tudo o que um filme de ação pede e... Schwarzenegger!!

O filme é uma sátira à diferença entre os filmes de ação e a vida real. Não é um filme que quer ser bom, não é um filme que se leva a sério. É um filme com excelentes cenas de ação e com uma dose muito razoável de momentos cómicos. Um exercício muito interessante que claro que podia ter uma abordagem muito melhor, mas simplesmente não quis... apenas quis ser entretenimento puro.

Uma coisa é certa... Neste filme percebemos que a vida real é de facto mais "profunda" mas tem muito menos piada... A casa do Schwarzenegger está vazia mas parece que o mundo real é ainda mais frio... Quem não se lembra do vilão a matar um gajo nas ruas de Nova Iorque e achar estranho não haver gritos nem sirenes? A única coisa que ouve é outro gajo a mandá-lo calar...

Uma das bandas sonoras melhor conseguidas em filmes do género, acho que todas as casas têm este CD na estante, AC/DC, Megadeath, Anthrax, Alice in Chains, Def Leppard, Aerosmith, Cypress Hill... Falta alguém?

Golpes Altos: Cenas de ação, imaginário, comparação da vida de filme com a vida real, realizador de culto.

Golpes Baixos: Schwarzenegger é dos piores actores de sempre mas não quero sequer "ler" se os protagonistas vão ou não bem... é o que menos importa! Não imagino sequer outro gajo a fazer este filme, está perfeito.

Ah, espera... o Austin O'Brien é que é o pior actor de sempre... 

Dead Man Down

Realização: Niels Arden Oplev
Argumento: J. H. Wyman
Elenco: Colin Farrell, Noomi Rapace e Terrence Howard

Confúcio disse: 'aquele que pensa vingar-se, deve cavar duas sepulturas'. Confúcio tinha razão. Muitos filmes se têm feito à volta da vingança, com grandes realizadores como Chan-Wook Park e Christopher Nolan a liderarem as ordes. Mas até Tarantino - o seu maior criativo - escolhe nunca escarafunchar demasiado. Em Django ou Kill Bill vimos personagens impulsionadas pelo desejo de vingança, mas nunca nos é permitido espreitar para dentro dos vingadores - nunca conseguimos sentir o que estão a sentir.

Em Dead Man Down, a história é diferente. O ambiente é um neo-noir que lembra Fritz Lang, caso este tivesse nascido nas ruas de Brooklyn um século mais tarde. O realizador não é Fritz Lang, não é Nicolas Winding Refn - ainda que tente - mas segue a linha dos realizadores europeus em Hollywood. O seu nome é Niels Arden Oplev, e é responsável pela trilogia Millennium. Lançou a actriz Noomi Rapace para os braços de Hollywood, e seguiu-lhe o rasto. O resultado é bom. Não é brilhante, não vai ficar para a história do cinema (ao contrário do seu conterrâneo Winding Refn), mas é honestamente um bom realizador. E Dead Man Down um bom filme.

Como disse, o tema é batido, mas a abordagem é nova. Neste filme, temos dois personagens principais impelidos pela sede de vingança. Obcecados, deixam que a sua vida gire à volta dessa ideia. Desistiram de viver, desistiram de qualquer outra esperança ou ambição que pudessem ter na vida. A sua vida foi poupada para que possam vingar-se, só isso. A coisa muda quando se conhecem. E é aqui que o filme ganha os pontos todos. A relação entre a personagem de Farrell e Rapace é perfeita. Há muito tempo que não via uma química destas entre dois actores, nem tão bons diálogos e tão boas interpretações. A interacção entre os dois faz-me lembrar os anos dourados de Hollywood, quando Kazan ensinou aos actores que as relações no cinema tinham que ser como na vida. A relação entre estes dois é, em falta de melhor palavra, deliciosa. E é refrescante ver isto no meio de um filme tão negro, tão violento, tão seco no sentido em que as emoções dos personagens parecem estar constantemente contidas - coisas à europeu, os americanos nunca conseguiriam criar personagens assim.

A parte mais curiosa, e mais profunda do filme, reside no personagem de Colin Farrell. Farrell pode, em qualquer altura do filme, vingar-se de uma vez e despachar aquilo para que possa continuar a sua vida. Mas, por alguma razão, não o faz. Vai arrastando a sua vingança de forma sociopata e honestamente perturbadora. E porquê? Não é por medo, não é por bondade, não é por absolvição. É porque um vingador é como um depressivo - se deixar de ter o objecto da sua vingança, é obrigado a encarar o mundo de novo, reaprender a viver nele. Um depressivo arranja motivos para se manter deprimido, como um vingador arranja motivos para continuar a sua vingança - é o que o faz viver.

E o filme ganha pela sua inteligência, pelos seus bons diálogos, boa realização e bons actores. É despretensioso e faz-nos sair de lá bem dispostos. A mim fez-me pensar, fez-me fechar a mão com cenas de acção eléctricas e fez-me sorrir com uma relação bem desenhada. Pode estar a ser um ano fraco para o cinema em geral, mas certamente não será para os filmes de acção.


Golpes Altos: Realização neo-noir - plano da escada e cenas da varanda muito, muito boas. Excelente argumento e direcção de actores. Quero uns Ray-Ban iguais aos de Dominic Cooper.

Golpes Baixos: O trailer prometia uma boa banda sonora, e não se confirmou. Terrence Howard está bem, mas o personagem pedia alguém mas carismático. Será que vi bem: o chefe dos mauzões é o Armand Assante??? 

quinta-feira, 18 de abril de 2013

The Hunter

Realização: Daniel Nettheim
Argumento: Julia Leigh
Elenco: Willem Dafoe, Frances O'Connor e Sam Neill

A figura é lendária. O "Grande Caçador Branco". Possivelmente a peça mais importante do meu imaginário infantil. Solitário, aventureiro, atormentado... letal. O homem muda, mas o mito é o mesmo. Desde 'As Minas de Salomão' de Haggard, até ao clássico 'White Hunter Black Heart' de Clint Eastwood, o cinema e a literatura exploram as trevas do coração humano ao colocar o caçador na selva, sozinho, contra a natureza.

Em The Hunter, Willem Dafoe interpreta um misterioso homem cujo passado e profissão não são inteiramente claros, e que é enviado para a imensidão da floresta da Tasmânia, em busca de um animal que se crê extinto há mais de 80 anos - o Tigre da Tasmânia. Como se a história não fosse cativante o suficiente, acrescenta-se o facto de este animal, o Tigre da Tasmânia, ter realmente existido e estar mesmo dado como extinto. Os únicos registos conhecidos podem ser encontrados no YouTube e parecem saídos de uma história de ficção científica. Está criado o ambiente para nos causar calafrios e curiosidades.

A autora desta história magnífica, Julie Leigh, realizou o seu primeiro filme o ano passado - um drama erótico chamado Sleeping Beauty. O filme deixou muito a desejar, e creio que Leigh terá aprendido a lição e limitar-se-á a escrever para que outros realizem. Neste filme, a realização é tão ou ainda mais importante que o guião. Daniel Nettheim é um newcomer que ainda vai dar que falar. Dafoe está perfeito e é entusiasmante vê-lo tão fora do seu habitat natural. Em The Hunter, interpreta uma mistura de Léon, o Profissional com um explorador saído de um livro de Hemingway. É contratado por um grande grupo farmacêutico para caçar o animal extinto, pois crê-se conter propriedades curadoras para um qualquer tipo de novo fármaco milionário.

Mas a viagem de Dafoe, como a de tantos homens antes dele, ultrapassa a sua missão, torna-se um dilema existencialista de um homem que afasta o sentimento do seu coração, se afasta das pessoas, prefere estar sozinho. Em último caso, a maior dificuldade do caçador solitário é olhar o animal nos olhos e premir o gatilho. Seria mais fácil matar uma pessoa. Porque olhar um animal nos olhos, para esta rara estirpe de homem, é como olhar-se a si próprio.

Este é honestamente um dos melhores filmes de 2011, e estreia hoje em Portugal com apenas 2 anos de atraso. É uma obra de beleza rara e profundidade perturbadora, que nos permite entrar dentro da alma do caçador, partilhar a sua solidão e, pelos seus olhos, contemplar a beleza do mundo natural enquanto afiamos a faca para a derrotar. O homem é feito de contradições, muitas vezes sente-se impelido a destruir aquilo que ama - Graham Greene falava de "destruição criativa",  Bukowski referiu que a única forma de fazer arte é ateando fogo e até Tolstoy percebeu que a violência conhece razões que a própria razão desconhece. O caçador de Leigh está na génese da natureza humana. Somos lobos solitários, todos nós. Somos criados em alcateia mas sabemos que, na morte como na vida, estamos por nossa conta.


Golpes Altos: Um drama existencial com traços de thriller científico. Magnifico trabalho de realização e de actores. Um grande filme que nunca, nem no momento final, nos desilude.

Golpes Baixos: Ter estreado com 2 anos de atraso, por exemplo.

terça-feira, 16 de abril de 2013

Golpes de Génio - Smultronstället (Morangos Silvestres)

Realização: Ingmar Bergman
Argumento: Ingmar Bergman
Elenco: Victor SjöströmBibi Andersson e Ingrid Thulin

De todas as falhas e virtudes do Cristianismo, uma permanecerá para sempre ligada ao lado mais triste do coração humano - a redenção. Até o mais agnóstico dos cientistas, no seu leito de morte, esperaria em silêncio por uma palavra de perdão, por uma luz divina que o lavasse de todos os seus pecados. Não vale a pena negar, é apenas humano.

Ingmar Bergman é provavelmente um dos três cineastas mais importantes de sempre. Realizou mais de 60 filmes ao longo de mais de 60 anos. Nenhum realizador abordou a morte, a fé e a redenção como Bergman - e ninguém tentou depois disso. Morangos Silvestres é um filme de final de vida, uma espécie de Christmas Carol, em que Scrudge é Dr. Borg - um médico que vai numa viagem de carro pelos campos suecos, na companhia da sua cunhada e de três adolescentes que encontra pelo caminho. Em certa medida, é o primeiro Road Movie da história do cinema, mas esse género só seria oficializado 10 anos mais tarde e no continente do lado.

A viagem empreendida pelo médico eleva-se da estrada para um patamar etéreo, no qual revisita os fantasmas da sua juventude - a namorada que o trocou pelo seu irmão, a mãe fria e castradora, o seu casamento falhado, a sua vida desperdiçada. Os Morangos Silvestres de Bergman simbolizam a sua origem, a sua natureza, as suas raízes. Borg apercebe-se ao longo do filme que se tornou algo que não queria. Apesar do trabalho que deixou como médico ter criado a fama de um homem caridoso, as pessoas que lhe são mais próximas acusam-no de frieza, de cinismo e de distância - e, nesta viagem, o velho doutor vê-se ao espelho, vê de onde veio e vê aquilo que isso lhe custou.

Uma das conclusões de Borg - e talvez a mais crítica - foi uma a qual eu próprio já cheguei e aprendi a aceitar. A inevitabilidade do nosso código genético, a sinistra certeza de que os erros dos filhos já foram os erros dos pais. Borg percebe que falhou onde a sua mãe falhou mas, pior que isso, criou um filho que é uma versão piorada de si. A sua visão cínica e derrotista da vida, o seu pessimismo e fatalismo presentes em cada frase originaram um filho incapaz sequer de ter uma relação - que vê o mundo como um lugar horrendo e a morte como o tão merecido descanso.

Esta é uma das obras mais importantes do século XX, e certamente o meu "Bergman" preferido. Porque, por incrível que pareça, todos nos identificamos com um personagem de 80 anos, todos vimos os mesmos erros cometidos, e é-nos dada a oportunidade de, enquanto somos novos, dar um rumo diferente à nossa vida e à nossa personalidade para que não acabemos como Borg, um velho amargurado à espera de morrer como viveu - sozinho. Mas, curiosamente, este não é um filme pessimista (e certamente não será um filme triste, se o compararmos aos restantes do realizador). É um filme com sentido de humor e que, no final, nos oferece uma cena de beleza rara - de redenção, de luz branca a reflectir na cara de Borg e do seu último e mais belo sorriso. Se não conseguirmos fugir aos fantasmas do nosso código genético, esperemos que a redenção nos chegue como chegou ao médico para que, no minuto final, possamos sorrir como ele sorriu.


Golpes Altos: Como é que é possível alguém nos anos 50 ter esta noção moderna de realização? É incrível! O actor principal, Victor Sjostrom, foi o realizador mais importante do cinema mudo Sueco, e um dos heróis de Bergman - foi essencial para a construção de um personagem que é metade Bergman, metade Sjostrom.

Golpes Baixos: Não há nada a apontar que faça sentido num filme destes. Provavelmente estará nos 10 melhores filmes de sempre. Existem coisas que hoje poderiam ser feitas melhor mas, curiosamente, ninguém as faz.

segunda-feira, 15 de abril de 2013

Oblivion

Realização: Joseph Kosinski
Argumento: Joseph Kosinski
Elenco: Tom Cruise, Morgan Freeman e Olga Kurylenko

O que dizer de um filme de 126 minutos em que 6 são bons, 20 são suportáveis, e 100 são uma grande trapalhada? A vontade é dizer mal, claro. Mas, por alguma razão, há qualquer coisa em Oblivion que me dá vontade de o elogiar ou, pelo menos, de suavizar a sua crítica.

A verdade é que Oblivion passa 126 minutos a tropeçar em si próprio. É um filme demasiado grande, demasiado complexo e com pouca vontade de corrigir ou explicar as suas inverossimilhanças e os seus tiros no pé. O realizador e argumentista Joseph Kosinski decidiu investir em efeitos especiais o que poupou em trabalho de guião - ou foi demasiado ambicioso ao acreditar que conseguia realizar e escrever uma mega-produção destas sozinho. Seja qual for a razão, pecou. E pecou porque Oblivion tinha tudo para ser um filme na onda de Solaris (calma.. o remake..), Moon ou Sunshine, mas acabou mais como um Total Recall (calma.. o remake..) glorificado. O ponto mais realista do filme, creio, assenta na hipótese de que, num futuro próximo, um exército de Tom Cruises invade a terra e destrói tudo o que conhecemos - ora, tendo em conta o passado demente do actor, está é uma hipótese credível, que todos devíamos ponderar com medo e cuidado.

A realização é pouco ambiciosa, parece contentar-se com o mainstream. O argumento tem falhas óbvias, os diálogos são tão fracos que fazem os três actores passarem por maus quando claramente não o são. Quem ficou bem na imagem foi a produção, o design de produção, etc.. Mas isso seria o de esperar. Mas então, porque é que me apetece desculpar o filme? Porque Oblivion é como aquelas pessoas que nos habituam à futilidade e ao falhanço a vida toda mas que, em um ou outro momento, parece-nos ver nos seus olhos algo mais - um brilho que sugere que, por baixo da capa de aparente desinteresse, vive algo mais. Porque uns olhos que olham assim escondem inteligência, mesmo que tímida ou aprisionada. Neste filme, houve um momento desses. Cruise e Kurylenko estão numa cabana, rodeados de verde, longe da fria tecnologia que assombra o resto do filme, e ela põe a tocar um vinil de Procol Harum - o êxito Whiter Shade of Pale. E, enquanto toca a música, começa a relembrá-lo de quem ele é e de quem foram, juntos, há muitos anos atrás. Isto é uma cena que me fez sorrir, e surpreendentemente, após mais de uma hora de anestesia sentimental, me fez sentir alguma coisa.

Mas não é só esta a razão que me faz perdoar um filme medíocre. A verdade é que a mensagem que Kosinski tenta passar é bonita, e é legítima. Oblivion não é sobre guerras espaciais, opressão governamental, recursos esgotados ou exércitos de Tom Cruises loucos assassinos (medo!) - na realidade, Oblivion é sobre o que faz de nós humanos, e o que faz de nós... nós. Oblivion diz, com todas as palavras, que a nossa alma é a nossa memória e que, mesmo que nos clonassem, se os nossos clones tivessem as nossas memórias, eram tão nós como nós próprios. Antes de perceber esta mensagem, tinha praticamente desistido do filme, mas houve qualquer coisa nela que me fez sorrir e pensar no diálogo entre Cruise e Kurylenko na cena de Procol Harum. Ela diz-lhe que ele lhe prometeu viverem uma vida longe de tudo e todos, morrerem no esquecimento do mundo, mas com as memórias um do outro. Se confrontarmos esta noção com o resto do filme, que defende uma morte heróica, citando passagens de Horácio e sacrificando-se pelo bem da humanidade, chegamos como que a um paradoxo. Para mim, ganha a noção de que a memória nos faz quem somos e que, quando a morte chegar, iremos bem sabendo que os Deuses nos esqueceram, mas na esperança que alguns humanos ainda se lembrem de nós.


Golpes Altos: Cena de Procol Harum. Produção. Mensagem do filme. Olga Kurylenko.

Golpes Baixos: Falta de ambição. Má escrita de argumento. Maus diálogos. Morgan Freeman (já chega, reforma-te). Exército de Tom Cruises assassínos. Olga Kurylenko não se despe nem tem sexo. 

sexta-feira, 12 de abril de 2013

The Company You Keep

Realização: Robert Redford
Argumento: Lem Dobbs (baseado no romance de Neil Gordon)
Elenco: Robert Redford, Shia LaBeouf, Julie Christie, Stanley Tucci, Nick Nolte, Richard Jenkins, Susan Sarandon, Brendan Gleeson, Sam Elliott, Terrence Howard e Chris Cooper


Robert Redford está de volta, mas em muito má forma. Está velho ao ponto de acharmos que a qualquer momento lhe pode cair uma orelha, está velho de mais para tentar ser o bom actor que nunca foi, está ainda mais velho que os outros velhos todos que reuniu para fazer este filme mas, sobretudo, está velho de mais para correr! Olhar para um Redford de 77 anos a "correr" e a "saltar" vedações, faz-nos instintivamente tapar os olhos em aflição. Tanto é, que o único factor de suspense presente neste suposto thriller, é a constante dúvida de quando ou como Redford irá ter um enfarte, partir uma perna ou deslocar a bacia antes de conseguir terminar o filme.

O resto do filme é igualmente fraco e deprimente, mas com alguns pontos a favor. Vou começar pelos golpes altos, para depois poder cascar à vontade. The Company You Keep é um thriller político que reúne todos os desgraçados dos amigos de Redford e lhes dá uma facadinha no currículo. No meio, alguns são tão bons actores que se conseguem desviar da mediocridade do guião e entregar uma boa performance. São estes: Shia LaBeouf, Richard Jenkins, Susan Sarandon e Brit Marling. E estes quatro merecem todo o meu respeito, porque conseguiram fazer com que não me levantasse e saísse a meio do filme. Todos os outros deviam estar, ou reformados, ou mortos. Redford está péssimo (péssimo!); Christie é outra que nunca foi boa actriz mas agora chega a ser embaraçoso; Nolte é um canastrão que parece ter uma bola de cuspo constantemente presa na garganta e ninguém faz o favor de lhe dar umas pancadas nas costas para ver se aquela merda pára de borbulhar cada vez que ele fala; Gleeson é o gajo mais irlandês do mundo a tentar interpretar um rancheiro norte-americano (o resultado é que passamos meia hora a acreditar que tem uma deficiência de fala); Cooper, Tucci e Howard são bons actores mas aqui aparecem tão pouco que nem merecem referência.

Quanto ao filme, Redford é um bom realizador. Tem sentido de estética, dá-se maravilhosamente bem em paisagens naturais, em cenários abertos - mas não sabe filmar um thriller. Não sabe, pronto. Deixou um atrasado mental qualquer agarrar numa boa história e escrever um argumento de merda, cheio de plot points, personagens e reviravoltas e, por cima disso tudo, tentou conjugar esse clima frenético com uma realização plácida, estudada e contemplativa. Para o espectador, isto torna-se bastante confuso. Não percebemos quando é que é suposto ficarmos nervosos, ou quando é suposto pararmos para cheirar as flores. É como se as imagens nos dissessem uma coisa, e a história outra. Depois, todo o desenrolar da narrativa é fraco... não percebemos o que motiva os personagens, nem percebemos bem o que Redford nos quer transmitir. Andamos a baloiçar entre velhos esquerdistas - uns que se arrependeram (e bem) de serem esquerdistas, e outros que continuam a viver como se tivessem 20 anos (inclusive utilizam expressões como brother, yeah man e largam um like, you know entre cada três palavras). Isto não interessa a ninguém. Era muito mais interessante Redford ter agarrado nesta ideia, e explorado apenas os personagens, atendendo a diálogos profundos e close-ups intimistas. Porque isto é um filme sobre pessoas, em que o realizador parece estar constantemente mais interessado em filmar espaços.

Mas pronto, já chega de cascar no velhote. Já provou - num passado distante - que é um bom realizador. Fez um dos filmes da minha vida, uma adaptação do clássico de Norman Maclean, And a River Runs Through It. Protagonizou bons filmes, sempre conseguindo esconder a sua falta de talento relativamente bem, e montou o festival de Sundance com as suas próprias mãos. Por isso merece o meu respeito e a minha admiração mas, sobretudo, merece que o Estado lhe pague uma boa reforma para não ter de fazer mais filmes de merda como este.


Golpes Altos: Richard Jenkins e Shia LaBeouf são TÃO bons actores que, quando aparecem, parece que estamos num filme diferente. Brit Marling é a actriz revelação dos últimos anos - esta foi a sua primeira aventura fora do cinema independente... coitada. Boa realização em espaços abertos, um realizador do campo sem dúvida.

Golpes Baixos: O resto. E tantos velhos, porra.

quinta-feira, 11 de abril de 2013

Retrospectivas - Terrence Malick



'nostalgia is a powerfull feeling... it can drown out everything'. - Terrence Malick


Há uns dias tive uma conversa acerca de literatura. Um amigo meu falava-me da vantagem que a literatura tinha quando comparada a outras formas de arte - 'é que a maior parte da nossa vida, sabes, passamo-la a pensar', dizia-me, 'e a literatura vê isso'. Os bons livros não se fazem de acção, fazem-se de reflexão - isso é inegável. Deixamo-nos absorver pela vida interior dos personagens, e aceitamos o exterior como pano de fundo, como uma desculpa para os conhecer. E seria de facto uma vantagem que a literatura teria para com outras formas de arte - caso Malick não existisse.

Na literatura existe uma técnica chamada stream of consciousness, na qual a acção se concentra nos pensamentos e sentimentos dos personagens, deixando por vezes que um pensamento ou uma recordação nos leve ao pensamento ou recordação de outro personagem. A forma mais fácil de perceber esta técnica narrativa, é imaginar um feixe de luz que vai atravessando vários personagens num mesmo cenário, deixando-nos entrar na sua alma e escutar o que têm para dizer. Esta técnica é associada à literatura e à psicologia mas, curiosamente, ainda ninguém parou para a pensar no cinema. Isto porque só existe um homem que a utiliza, esse homem é Terrence Malick.

Os filmes de Terrence Malick, poucos que são, dão-nos sempre uma sensação de pureza, de nostalgia, de estarmos simultaneamente dentro dos personagens, mas afastados deles, como espectadores passivos - como deuses. As suas personagens raramente são vistas a falar, mas sempre acompanhadas pelos seus pensamentos. São solitárias, são introspectivas, são pessoas que vêem um mundo diferente do nosso, percepcionam coisas diferentes das que nós percepcionamos. No seu filme de 1998 The Thin Red Line, Jim Caviezel tem uma conversa com Sean Penn, em que Penn lhe diz que 'neste mundo, um homem por si só não é nada... e não existe nenhum mundo para além deste', e o filme é precisamente centrado na personagem de Caviezel, e acompanha-o enquanto ele conhece o outro mundo - é um personagem que, no interior de uma guerra, conhece a paz, a beleza - conhece Deus. O Deus de Malick não é um Deus cristão, não é budista, não tem espaço no mundo real. O Deus de Malick é a natureza, é a criação - Malick vê o melhor e o pior das pessoas, mas escolhe sempre o lado bom.

Ao longo dos anos, a sua filmografia tem ganho outros contornos, tem-se aperfeiçoado. Em Badlands de 1973, Mallick ainda não tinha percebido quem era, ainda não tinha completado a sua evolução como pessoa mas, ainda assim, conseguiu fazer uma obra-prima extraordinária. A partir daí, foi sempre crescendo. Foi olhando a humanidade de frente, pedindo perdão a Deus pelos seus erros, ajudando-nos a caminhar melhor por um caminho mais puro, mais profundo. O que o trabalho de Malick nos dá, é uma oportunidade de compreendermos o mundo e a nossa própria vida, e fazermos as pazes com ela.

Para mim, ver os seus filmes é um processo catártico, que me deixa fechar os olhos e descansar, sabendo que existe equilíbrio num mundo desequilibrado, que existe um desígnio para cada um de nós, para a humanidade em geral. Malick relembra-me que a beleza que nos envolve não existe por acaso, e que o "outro mundo" é o mesmo que este - apenas visto com outros olhos. Do fundo do coração, obrigado.


'Where were you when I laid the foundations of the Earth, when the morning stars sang together, and all the sons of God shouted for joy?' - Job 38:4-7

quarta-feira, 10 de abril de 2013

Welcome to the Punch

Realização: Eran Creevy
Argumento: Eran Creevy
Elenco: James McAvoy e Mark Strong


'police and thieves in the streets. fighting the nation with their guns and ammunition' - The Clash


Gosto de ser surpreendido. Gosto de olhar para um cartaz de um filme e pensar "Que merda de nome... Quase tão mau como Gangster Squad..." - e depois vai-se a ver, e é sinceramente o melhor filme de acção do ano. Eu sei que o ano só começou agora, mas tenho a sensação que será difícil fazer-se melhor (dentro do género, claro).

Welcome to the Punch é o segundo projecto do britânico Eran Creevy, e conta com um forte apoio produtivo de Ridley Scott - que provavelmente lhe terá valido o excelente elenco principal. Creevy começou como assistente de realização a grandes nomes de Hollywood como Woody Allen (Scoop) e outros mais ingleses como Matthew Vaughn (Layer Cake), mas decidiu-se ficar pela pátria mãe. Fez uns videoclips e, em 2009, estreou o seu primeiro projecto independente Shifty. O filme ganhou uns BAFTAS, recebeu boas críticas, e percebeu-se o talento do futuro realizador mas, neste filme, mostrou que é possível fazer-se um bom filme num género renegado.

O filme centra-se em dois personagens, um polícia e um ladrão. Inimigos mortais, estão de lados opostos da lei. O que este filme pressupõe é que... talvez não estejam? Creevy vai lutando contra os arquétipos típicos dos filmes de acção, colocando-nos mais próximos do ladrão que do polícia. Depois, vamos dividindo o nosso carinho e compreensão pelas duas personagens, e depois por três, e quatro até que, no final, percebemos não haver inimigo palpável - o inimigo é a Nação, é o "sistema" (Dias da Cunha, 2001).

No fundo, o filme fez-me lembrar a supracitada música dos The Clash - não só pela óbvia origem britânica, mas por colocarem as duas faces da lei na mesma moeda. Depois desta reflexão barata, resta-me dizer que os personagens são óptimos, a história é simples - como se quer num policial - mas assertiva e interessante, as cenas de acção são fantásticas, os diálogos são incríveis (repito, incríveis!) e a realização... a realização é claramente o trunfo do filme.

Londres é filmada como um estranho labirinto, em tons de cinza e neon, vista de cima para nos dar uma sensação de espaço digital em que os personagens correm uns atrás dos outros de arma na mão. Epah o filme parece um jogo, mas no bom sentido! A banda-sonora é literalmente eléctrica, e acompanha o ambiente de suspense presente durante o filme todo. A noção de espaço deste realizador faz-me lembrar Antonioni - posso estar a extrapolar um pouco, mas a verdade é que Creedy alterna entre uma Londres urbana e labiríntica e uma Islândia aberta, de espaços verdes em que quase podemos cheirar as árvores no lusco-fusco da manhã.

Enfim, podem achar que ponho este filme num patamar onde não pertence mas, como disse, gosto quando um filme me surpreende e, sobretudo, gosto de bons filmes de acção. Numa entrevista recente, Creedy disse ter feito um bom filme de acção, mas que espera um dia fazer 'a fucking brilliant one'. Para mim está de parabéns, venha o próximo!


Golpes Altos: Realização, James McAvoy, Mark Strong e todo o elenco secundário (inclusivé o gajo de Walking Dead), banda-sonora.

Golpes Baixos: Uma cena especificamente que considero fraquinha, em que o polícia fala com a sua namorada acerca da sua frustração. Um melhor título, um melhor cartaz, uma melhor campanha.

segunda-feira, 8 de abril de 2013

Gambit

Realização: Michael Hoffman
Argumento: Ethan e Joel Cohen
Elenco: Colin Firth, Cameron Diaz e Alan Rickman

Em 1966, Ronald Neame realizou uma divertida comédia acerca de um ladrão e de uma dançarina exótica. O ladrão era Michael Cane, e a dançarina era Shirley Maclaine - e que dupla. Em 2004, os irmãos Joel e Ethan Cohen aventuraram-se num remake de uma outra antiga comédia, The Ladykillers - e como seria de esperar destes dois incríveis argumentistas, o remake superou, e muito, o original.
Passam 9 anos, e os irmãos Cohen perdem o juízo, ou o dinheiro, ou ambos.

Este remake de Gambit - o tal sucesso de 1966 - é positivamente horrendo. Colin Firth terá dito que lhe apetecia fazer uma comédia - algo levezinho. Bem, e conseguiu. Gambit é das coisas mais levezinhas que já vi na minha vida. De facto, é tão levezinho tão levezinho, que arriscaria dizer que mais valia terem estado quietinhos. Mas não. 'Não temos nada para fazer, não temos boas ideias - 'bora fazer uma porcaria qualquer.'

Então vamos lá por partes. O primeiro erro é este: mais filmes de assaltos, golpes do baú, e quadros roubados, NÃO! Não quero! Houve uma altura - por volta da década de '50 - em que todas as semanas se fazia um filme sobre assaltos. Não era fixe nessa altura... agora muito menos. Já ninguém quer rever o Caso Thomas Crown, o Golpe em Itália, o Oceans 11, 12, 13, 14 ou o caralho!

Mas sobretudo - e oiçam-me com atenção porque isto vai doer: já ninguém, ninguém! quer ver o Colin Firth. "Mas ele era tão fofinho quando fazia de Lorde do caralho naquela merda daquela adaptação duma merda qualquer da Jane Austen!" - Não, não era! Não era e não é! É um inglês chato, empertigado, desprovido de talento e que me cansa os olhos. Pronto, tenho dito.

Quanto à Cameron Diaz, contínua linda (mas nota-se o esforço... nota-se o esforço) e continua má actriz. O Alan Rickman também nunca foi bom (apesar de ser o Hans Gruber), e pronto... é isto.

Quero só deixar uma nota aos irmãos Cohen:

"Joel, Ethan... eu estava feliz com a vossa cena dos remakes de Westerns. Eu gostava dos vossos diálogos, das vossas personagens maradas. Espero que isto tenha sido um tiro ao lado, do mesmo género daquele com o Clooney e a Zeta-Jones. Vá... esforcem-se lá mais um bocadinho... E, se for para fazerem merda, escusam de levar realizadores convosco. Michael Hoffman até estava no bom caminho. Fazia filmes sobre o Tolstoi e coiso... Isto é para quê? Para nada... Não é para nada..."


quinta-feira, 4 de abril de 2013

Golpes de Génio - Fantastic Mr. Fox

Realização: Wes Anderson
Argumento: Wes Anderson e Noah Baumbach (baseado na obra de Roald Dahl)
Elenco: George Clooney, Meryl Streep, Bill Murray, Jason Schwartzman e Owen Wilson

Há uma fábula antiga acerca de um escorpião que quer atravessar um rio e de uma rã a quem pede ajuda. Suponho que já a tenham ouvido. A rã começa por negar, afirmando que o escorpião a vai picar. O escorpião constrói um argumento sólido e explica que, caso o faça, também ele morrerá afogado. A rã pensa um pouco, e acaba por aceitar transportá-lo para a outra margem. A meio do caminho, o escorpião pica-a e a rã, afogando-se em veneno, pergunta-lhe confusa 'Porque é que me picaste? Vamos morrer os dois...', ao que o escorpião responde num silvo triste 'Eu sei... mas é a minha natureza'.

Fantastic Mr. Fox é uma obra rara. É um filme de animação, em stop motion, maravilhosamente divertido e assustadoramente existencialista. É um filme cuja profundidade vai espreitando por entre diálogos de uma intensidade perturbadora e que aborda o tema mais trágico da natureza humana (e animal) - a sua inevitabilidade. Fox promete à sua mulher grávida que nunca mais lhe mente, nunca mais a engana, nunca mais rouba galinhas, patos, gansos ou qualquer outro tipo de ave. Promete-lhe que está pronto para assentar. Ser pai. Ser marido. Fox promete à mulher que vai deixar de ser ele mesmo.

Este é um filme sobre um animal selvagem que tenta deixar de o ser. Tenta humanizar-se, criar responsabilidades. É isso que é pedido de todos nós, certo? Que assentemos, criemos raízes, ganhemos responsabilidades e deixemos de agir por impulso, por instinto - por natureza. Os problemas de Mr Fox não serão compartilhados por toda a gente. Há vários tipos de pessoas no mundo, e nem todas têm uma natureza desviante. Essas não vão compreender a tragédia do filme, não vão aguentar as lágrimas no silêncio que se faz quando a Sra Fox lhe pergunta porque é que mentiu e ele - apercebendo-se nesse preciso momento da inevitabilidade da sua própria natureza - lhe responde: 'because I'm a wild animal'.

É difícil falar sobre um filme que aparenta ser tão divertido e simples mas está recheado de sabedoria, de tristeza e de sensibilidade. A viagem que Fox empreende vai fazê-lo aceitar-se como é, mostrar-se como é, e conhecer também a natureza dos que o rodeiam. Por baixo dos fatos de advogado, das paisagens impressionistas, dos pais de família, dos canalizadores, cozinheiros, professores... estão animais selvagens. Animais selvagens que, em último caso, podem contar apenas com o seu instinto para fazerem o que os animais selvagens acima de tudo fazem - sobreviver. E Mr. Fox lembra-os disso. Lembra-os que o seu nome em latim os remete para um estado mais primitivo da evolução. Lembra-os de quem são.

E, ultimamente, é apenas quando aceitamos quem somos - as nossas forças e as nossas fraquezas, o que somos e o que gostaríamos de ser - que perdemos o medo e começamos a ser felizes. Fox confronta a sua fobia de lobos quando, no final, tem um encontro com um. Esta é uma cena maravilhosa, intensa, de uma beleza demasiado estranha para ser explicada. Quando Fox se aceita como um animal selvagem, aceita também os outros. O rato vilão que sonhava com cidra, o lobo que fecha a mão e a levanta, como que dizendo 'somos o mesmo, eu e tu'.

Somos estranhos, todos nós. Vivemos segundo as nossas próprias excentricidades e, enquanto uns limitam a sua natureza para que possam viver em sociedade, outros abraçam-na e confiam que, um dia, a sorte vai permitir-lhes serem felizes com as armas que têm. Este filme lembra-nos que é pela nossa estranha natureza que somos quote/unquote... fantásticos.


Golpes Altos: Wes Anderson.

Golpes Baixos: Pior cartaz, pior campanha de marketing de sempre. Mascaram uma obra-prima do cinema de um filme para a família. 

terça-feira, 2 de abril de 2013

Golpes Indie - Before Sunrise / Before Sunset

Realização: Richard Linklater
Argumento: Richard Linklater
Elenco: Ethan Hawke e Julie Delpy


No primeiro filme, ele senta-se numa ponte em Vienna. Ela encosta a cabeça ao seu colo enquanto ele, jovem apaixonado, lhe recita um poema de W. H. Auden - 'But all the clocks in the city / Began to whirr and chime: / Oh let not time deceive you, / You cannot conquer time'. E esta é a triste e sinistra verdade desta obra. Não há nada mais derradeiro que o tempo. O tempo é inimigo da juventude, é inimigo do amor. Passamos a vida toda a lutar contra ele, tentando conquistá-lo. Não sei se Jesse ou Celine tiveram alguma vez noção, enquanto personagens, da importância que o tempo teria na sua vida cinematográfica.

Before Sunrise e Before Sunset são dois filmes sobre tempo. O tempo que dois amantes têm para se conhecerem, para se apaixonarem e para se despedirem. São só umas horas, mas é suficiente. Jesse e Celine conhecem-se em Vienna, apaixonam-se, encontram um no outro as idiossincrasias comuns de adolescentes incomuns, fazem promessas difíceis de cumprir, deixam uma porta aberta que só um destino muito benevolente poderia fechar.

Passam 9 anos. Já não são adolescentes. Nunca mais se encontraram. As suas caras carregam as marcas de desilusão comuns aos 30 anos - ambos foram amados, magoados e abandonados. Se cresceram ou não em sentidos opostos, não interessa. Mas, quando voltam a encontrar-se por acaso, a conversa é diferente - e a cidade também. O crepúsculo romântico de Vienna dissolve-se, é trocado pela fria realidade da tarde Parisiense. As luzes são mais claras, as ruas estão mais cheias. Desta vez, Jesse e Celine são obrigados a confrontarem-se com a realidade. Mas, se os seus diálogos perderam algum romantismo, a sua relação torna-se agora mais concreta, mais palpável. O amor permanece platónico, o tempo contínua a fugir-lhes, as vidas de cada um parecem impedi-los de permanecer neste limbo dos amantes.

Isto é o que me diz o meu eu romântico, o meu eu adolescente que ainda me grita ao ouvido coisas horríveis a meio do dia. Mas o meu eu adulto vê as coisas de forma diferente. Vê mais esperança no segundo filme que no primeiro. Ambos acabam em aberto, não nos deixando saber o que vai acontecer com o casal mas, enquanto no primeiro as promessas são feitas em forma de sonho, de paixão; no segundo o silêncio fala por si, mais maturo, mais verdadeiro. Por vezes, quando se cresce, percebe-se a necessidade de se estar calado, percebe-se a importância de não se fazer promessas. Quando crescemos, aprendemos a não nos deixarmos enganar pelo amor ou pelo tempo e podemo-nos encostar e sorrir, sabendo a impossibilidade de os manter ou conquistar.

Richard Linklater começou este projecto quando se dava o boom do cinema independente dos anos '90. Manteve-se fiel ao seu estilo e ao objectivo da sequela. Agora, 18 anos mais tarde, Linklater volta a pegar num projecto que ainda tinha uma última palavra. Estreia este ano Before Midnight. Esperemos que Jesse e Celine tenham crescido tão bem como gostariamos ou que, pelo menos, não estejam pior do que quando começaram.


Golpes Altos: Um filme de adolescentes que passa para um filme de jovens e que, dentro de pouco tempo, acabará num filme de adultos. Faz-nos perceber que a beleza da solidão é a perspectiva de a terminar.

Golpes Baixos: Haviam 1000 mulheres mais interessantes que a Julie Delpy... 1000!